Crônica: O sertanejo e a fé
Dificilmente se encontrará ser humano que seja mais
católico, mais religioso e que tenha mais fé que o povo nordestino,
principalmente aquele sertanejo dos lugares mais distantes, menos desenvolvidos
e envoltos em tanta pobreza.
E é exatamente esse sertanejo que possui retratos de santos
penduradas nas paredes de barro, mantém oratório e imagens sacras rodeadas de
velas e fitas, faz orações durante o dia inteiro, tem a igreja como extensão da
casa e não perde uma missa sequer, que mais sofre esperando a ajuda divina.
Mesmo em épocas de farturas, de roçados verdejantes e
colheita certa, algum ou outro animal tendo a palma e o capim, o sertanejo
jamais se omite na sua fé, na sua fervorosa religiosidade, na sua certeza que
tudo depende de Deus. Daí continuarem as promessas para que as chuvas continuem
caindo e a sobrevivência seja garantida através da terra.
Mas as promessas, rezas e rogos, parecem não ter eficácia
assim que as estiagens começam a mostrar suas feições. Contudo, ainda que a
seca se alastre de vez pela região, o mato comece a perder o viço e acinzentar,
os tanques e reservatórios sequem totalmente; enfim, o sol e o calor impiedosos
tomem conta de tudo, se engana quem imaginar que a fé será diminuída um
tantinho assim.
Mesmo havendo mudança nos motivos para as orações e as
promessas, vez que agora a fruição religiosa se volta para pedir que o livre de
tanto sofrimento e afaste de todos aquela situação de sede, fome e tantas
outras formas de miséria, a crença incondicional no poder de ação divina
continua inabalável. E talvez ainda mais forte.
Mesmo que a situação se torne quase insustentável – como
está ocorrendo agora no sertão nordestino -, o sertanejo se mantém na firmeza
da fé. Ainda que olhe adiante e só encontre ossadas de bichos, feiúra na
natureza e pessoas e restos de animais sedentos e famintos, dificilmente alguém
ouvirá de sua boca uma palavra sequer que maldiga a sorte e coloque a culpa no
esquecimento de Deus.
Ninguém ouvirá que estão naquele estado de miséria, tendo de
suportar tanto sofrimento, porque Deus não atende seus rogos e suas promessas;
não se ouvirá de nenhuma boca que Deus esqueceu o povo que mais precisa de sua
benção; ninguém ouvirá que dali em diante darão menos importância aos cultos,
aos santos e à divindade porque não merecem estar passando por tamanho
privação.
Pelo contrário. Por todos os cantos o que se ouve é a
reafirmação da crença, da fé, da religiosidade. E assim dizem que com a graça
divina logo as chuvas cairão, as trovoadas virão, os tanques transbordarão, as
plantas brotarão, a natureza se encherá novamente de vida, os homens e animais
saciarão a fome e a sede. E Deus, sempre Deus, e acima de tudo.
Contudo, urge indagar: O Deus do sertanejo, que é o mesmo
Deus de todos - ainda que seja mais reverenciado no sertão que em qualquer
outro lugar -, não poderia ouvir mais de perto tantas súplicas invocadas em seu
nome? De outro modo, ainda que não fosse para dar uma proteção diferenciada,
não poderia agir de forma a não permitir tanto sofrimento naquele povo já
historicamente desvalido?
Neste aspecto muitas questões se impõem, e as mesmas refogem
aos estreitos objetivos desta análise. Certamente alguns diriam que o que
provoca sofrimento ao sertanejo não é a ausência do olhar divino para aquele
povo, pois onipotente, onisciente e onipresente, mas sim as condições naturais
daquele ambiente hostil para sobreviver.
Ora, mas onde estará o poder do Deus criador, aquele que
move montanhas, aquele que tem em suas mãos a vida e a sorte do mundo? O
infinito poder de Deus, agindo com maior compartilhamento das forças do bem,
não poderia interferir diante de tanto sofrimento, tanta angústia, tanta fome e
tanta sede? A onisciência desconhece o que no sertão existe, a onipresença de
vez em quando se ausenta de lá, a onipotência não pode fazer com que chova com
mais regularidade naquele lugar?
Certamente não haverá respostas para tais questionamentos.
Ou haverá, mas no sentido de afirmar que os desígnios de Deus são ignorados
pelo homem, que Deus escreve certo por linhas tortas, que Deus, na sua infinita
bondade, jamais deixará ao desamparo qualquer dos seus filhos.
Mas, por qualquer fundamento que seja, o problema continua
existindo. E do mesmo modo permanece a inabalável fé do povo sertanejo. Neste
aspecto e neste momento deveria prevalecer, ao menos, o Deus da recompensa:
Olhai, Senhor, para aquele que mais acredita na tua força, aquele que com mais
fé se entrega em súplica, aquele que mais reverencia o teu nome e mais vive os
teus ensinamentos.
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